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Vitória

Vitória

Carta para minha amiga Janete

Uma das coisas que gosto no “nosso português”, é a riqueza que uma só palavra carrega nos seus significados. Não foi à toa, que quando fui apresentada, à primeira vez, ao dicionário analógico, me apaixonei pela diversidade dos olhares sobre o mesmo fato.

Assim, escolho a palavra Vitória, para iniciar esse escrito.

Na juventude, precisamente, em 1981, aos 18 anos, fiz uma das minhas viagens inesquecíveis. Saindo de Vitória, ES, fui passar uns dias em Trancoso, BA. Vilarejo pequeno, pouco conhecido e com acesso difícil para se chegar. Mochila nas costas, cabelos ao vento, e aquela emoção de iniciar uma viagem, rumo ao desconhecido. Depois de 8 horas confinada dentro de um ônibus, descer na rodoviária de Porto Seguro, iniciar a caminhada para a travessia de balsa, experimentar no corpo o cheiro do mar e a beleza dos casarios, tinha gosto de liberdade. Do outro lado, sabíamos, eu e minha irmã, dois anos mais velha, que teríamos que pegar um fretado até Trancoso. Com sorte, encontraríamos, uma “perua” com saída próxima. Não estávamos sozinhas. Tinha mulheres com crianças no colo e cestas de compra. Tinha homens. Tinha velhos. E alguns estudantes, como nós, em busca de saborear o novo.

Conseguimos uma kombi azul. Sei lá, de que ano era, parecia ser mais velha do que nós. Mas, era linda. Era mágica. Numa estrada de chão, entre buracos e costelas de Adão, seguimos viagem. Primeira parada, Arraial de Ajuda. Na segunda e última parada, descemos. Estávamos no quadrado. Igrejinha à frente e nenhum vestígio de hotel ou pousada. Tínhamos que encontrar um pouso na casa de um dos moradores. Sentimos a brisa, caminhamos até atrás da Igreja, olhamos o mar e fomos procurar um pouso. Achamos uma casa. Não lembro o nome da mulher que nos recebeu. Mostrou a casa. E disse que ficaríamos no quarto das filhas: Janete e Silvana. Tínhamos a mesma idade.

O tempo do quadrado, era diferente do tempo que eu conhecia. Tudo era lento e precioso. A descida para a praia. Os almoços servidos nas cozinhas das casas e sobretudo a incrível possibilidade de se “entrar na vida do outro”. Tenho muitas lembranças de tempos diferentes. Não sei quantas anos seguidos, voltei à Trancoso. Eu sei quantos afetos tenho impressos em mim.

Acordar e ficar deitada na grama, esperando a hora do café, anunciada pelo cheirinho gostoso, dos pães feito em casa, dispostos num velho tabuleiro, sobre o beiral da janela de madeira, que como uma pequena porta, abria para o lado de fora da casa, hoje, equiparo à quase um ritual onde aromas e sabores enfeitam o dia. Café com pão quentinho, saído do forno. Como hóspedes da casa, podíamos saborear as delícias da primeira fornada e sair em seguida para a praia, sabendo que na volta, pediríamos um PF. Prato feito com iguarias que nunca havia comido: tartaruga ensopada! Imagine, se hoje, eu aceitaria provar um animal tão especial.

Embora os dias fossem de pausa e lentidão, logo chegava o dia de voltar para casa. As experiências ali, experimentadas, me fizeram voltar algumas vezes, nos anos seguintes, naquela cidade e naquela casa. Cada ano, um encontro. Voltar ao quadrado, à casa de Janete e viver tantas aventuras era um desejo constante. Teve um ano, que chegamos à Trancoso, na garupa de uma moto. Carona conseguida, ainda dentro da balsa, com um grupo de motoqueiros. Outro ano, fomos a pé, pela praia, de Arraial de Ajuda à Trancoso. Aventura, que cessou já com estrelas no céu.

Mas, lembrança é coisa, que não fica parada. É como ponte, quase pinguela, que amarrada por cordas, balança quando a gente passa, misturando o passado com presente, deixando brechas para o futuro. No final de 2022, estava eu, passeando, de novo no quadrado, acompanhada do filho mais novo, que nem lembrava, que um dia tinha passado por lá, e que aquele passeio tinha sido interrompido por uma mordida de cachorro.

Coração um pouco acelerado, decido parar no restaurante, que na minha memória, era a antiga casa da Janete. Entro, pergunto se sabem sobre a Silvana e a Janete. A moça sorri e diz, que d. Silvana, não estava. Naquele dia, não iria ao restaurante. Sinto uma alegria, ao constatar que ela tinha resistido. Continuava ali. E a Janete? “Ela deve estar no restaurante dela, ali do lado, de nome: Vitória”.

Com passos largos, adentrei no local indicado. A amiga das férias da juventude estava sentada, com uma criança no colo e sorriso largo. Não tive dúvida, era ela. Janete? Zina? Entre risos e emoção, seguido de abraço, puxa uma cadeira e com a mesma voz suave e cara de menina e fala: senta!

Naquele momento, ignorava a possibilidade de reviver o tempo parado. A lentidão necessária para escutar um caso. Para sobretudo, escutar uma experiência vivida. Eu estava sentada, no restaurante: Vitória, ao lado da proprietária, de roupa simples e chinelos de dedo.

Me conta, Janete, um pouco sobre a vida. Essa criança? Seu neto? E Silvana, sua mãe e a outra irmã.

Queria ter gravado nossa conversa. A fala da Janete parecia aula viva de filosofia. Foi contando por que o restaurante se chama Vitória, que me ensinou com poucas frases, sobre a força e a coragem. Janete, mulher nativa de Trancoso, assim como muitas outras nativas, precisaram vender a própria casa, quando o capitalismo selvagem, chegou ao quadrado, como um mar revolto que derruba o que está pela frente. O quadrado, hoje, está tomado por grandes restaurantes, com chefs de São Paulo, Rio e de vários lugares do mundo. O antigo casario, não abriga mais moradas. O povo local foi “convidado” a sair das suas casas, em troca de dinheiro e fazerem morada nos arredores do que hoje, é o que sustenta o turismo do local. O “desenvolvimento” chegou, trazendo marcas da Oscar Freire, rua famosa de São Paulo e dos desfiles de moda para o gramado. No quadrado de Trancoso, hoje, o metro quadrado imobiliário, é caríssimo.

Sim. E qual foi a Vitória? Janete, assim, como outros nativos, também, vendeu a sua casa. E ela anos depois, conseguiu juntar dinheiro, trabalhando duro, num espaço alugado no quadrado e teve coragem de fazer um empréstimo e comprar sua própria casa, novamente. Contou sobre o dia, que assinou a escritura. Do padre da cidade que foi ao local abençoar o imóvel. Contou da dificuldade em ser a compradora, enquanto outros ofereciam mais dinheiro, para evitar a compra. Ela me contou detalhes, que estão esquecidos em mim. Enquanto me contava a sua história, que talvez, esteja um pouco modificada, ela segurou na minha mão e com olhos marejados disse:

“Na vida, precisamos de coragem”.
“Eu sou a única nativa, que consegui voltar para o quadrado, por isso, meu restaurante se chama Vitória.”

Atualmente, o restaurante da Janete chama-se Ali na Janete.

Vitória também é o nome de uma das suas filhas, e depois de alguns anos, sua família apoiou para que ela mudasse o nome do restaurante para o seu nome.

Instagram: @alinajanete

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