Por entre barcos, redes de pesca, som de tambores, de pandeiros revelam-se histórias de agradecimento, de legados e de encontros. De alguma forma, os pescadores com seus gestos e símbolos promovem um elo tangível entre o céu e o mar.
Os Garimpeiros do Mar de Trancoso
“Por que garimpeiros, Robinho?” “Porque muita coisa mudou, as coisas estão mais difíceis, hoje pescar é garimpar.”
No dicionário, garimpar é procurar por pedras preciosas e pepitas de ouro; procurar meticulosamente. Com o passar dos anos, os pescadores têm que garimpar peixe para sobreviver. “Esta é uma história de pescadores. É uma história de homens do mar. Para o pescador, o mar é uma sedução. Para o pescador, o mar é também a luta pela vida. Cada um deles carrega uma história no peito. Uma história do seu amor na terra que pode ser tão grande pelo seu amor pelo mar. Mas o pescador, quando é chamado pelo sol, ele vai. Vai para o mar, para o peixe. E todas as manhãs, vai cantando um canto de fé onde louva a sua jangada, o seu mar, o seu trabalho. Onde louva também uma eterna esperança de que um peixe bom possa trazer, se Deus quiser.”
Os versos de Dorival Caymmi fazem parte de um conjunto de canções que compõem a faixa “História de Pescadores”, do álbum Caymmi e o Mar, gravado pela Odeon, em 1957. A pesca é uma das atividades econômicas mais antigas do Brasil, reportando-se ao período colonial. De acordo com o Ministério da Pesca e Aquicultura, a atividade pesqueira no Brasil é regida pela Lei nº 11.959, de 29 de junho de 2009, que estabelece a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável da Aquicultura e da Pesca.
Para além da importância dessa atividade para a economia do país, a pesca é um modo de vida e representa a identidade de diversas comunidades brasileiras. O pescador sabe quando o vento está bom, sabe quando a lua é boa para pescar, sabe dos perigos, sabe da solidão em alto mar e ele tem história para contar. Quando eu falei sobre “história de pescador”, Robson Alves de Jesus, o Robinho, que presidiu a Associação dos Pescadores de Trancoso Garimpeiros do Mar (GMAR) por 2 anos, me sinalizou que é preciso desmistificar essa coisa de história de pescador. É uma expressão que às vezes é utilizada para se referir quando a história parece exagerada ou até mesmo mentirosa.
“Tem coisas que a gente contando como é na prática e que nunca vai entrar na sua cabeça, o que acontece em alto mar, aí vira história de pescadores. A nossa profissão é muito sofrida. Sol, chuva, é ficar sentado por horas na mesma posição”, ele enfatiza. Neto, filho e sobrinho de pescadores, Robinho foi servidor público por 14 anos, abandonou o concurso e voltou para a atividade da pesca. Ele conta que o mar não é mais como antigamente. Sobre a importância da associação, ele menciona “nós estamos falando aí da época das enchentes, da época da pandemia. Os pescadores receberam cestas básicas, nós, da associação, conseguimos comprar EPIs (equipamentos de proteção individual), coletes, boias salva-vidas para as embarcações e conseguimos fazer a única ponte que tem acesso a Porto Seguro para um carro no caso de um acidente marítimo ou aéreo. Como já aconteceu aqui, né?”.
Erivaldo Santana Azevedo, o Vaval, nasceu em Itaporanga e antecedeu Robinho na presidência da GMAR, ficou como presidente por 4 anos. Ele fala dos desafios do ofício, “comecei nesse ramo porque precisava trabalhar, comecei com um barco pequeno. Ali no mar você está na mão de Deus, você só vê o mar e o céu, navios que passam de madrugada. A gente fica 10 dias em alto mar, carrega o barco em Porto Seguro e volta com os peixes pra cá”. “Tem muita história, uma vez estava com Zé Roberto e Ivan, no mar, e eu achei que a gente não ia voltar, eram ondas de cinco metros de altura. Você vai para o alto mar, o tempo pode mudar e não avisa não. A vida do pescador não é fácil, por isso que quando chega a Festa de São Pedro é para comemorar com uma festa grande, porque no mar é sofrido”, lembra. Vaval tem uma peixaria há 20 anos, na estrada que segue para o centro da cidade.
A Festa de Santo no Mar
Ao longo de junho acontecem diversos festejos e três santos são celebrados: Santo Antônio, no dia 13, São João, no dia 24, e São Pedro, no dia 29. O mais aguardado pelos pescadores é São Pedro. Estas festas, que têm origem pagã, fazem parte do calendário da Igreja Católica. Apesar de serem uma herança da colonização europeia, no Brasil esses festejos foram transformados pela preponderância das culturas indígena e africana. São Pedro era pescador no mar da Galileia e foi o primeiro apóstolo escolhido por Jesus.
No livro “Santos de casa: fé, crenças e festas de cada dia”, Luiz Antônio Simas conta que “São Pedro é considerado o padroeiro dos pescadores, já que era essa a função que ocupava quando conheceu Jesus na Galileia”. Simas conta que ele nasceu com o nome de Simão e que Jesus Cristo, ao conhecê-lo, passou a chamá-lo de Pedro (pedra, em grego). E completa: “diz a tradição que, condenado à morte na cruz, em 29 de junho de 67 d.C., pediu para ser crucificado de cabeça para baixo, por não se sentir digno de morrer como Jesus.”
O ofício de pescador, apesar de sua imensa importância, muitas vezes é desvalorizado. Já a Festa de São Pedro representa uma tradição repleta de alegria para esses trabalhadores. Vaval acredita que essa celebração é uma oportunidade preciosa não só para celebrar a cultura pesqueira, mas também para prestar uma homenagem aos pescadores mais experientes de Trancoso, aqueles que preservam a sabedoria e a história do ofício.
Nos anos de 2022 e 2023, como presidente da GMAR, Robinho, junto com os pescadores reestabeleceram a celebração à São Pedro, depois de um período sem festa por causa da pandemia. Em 2024, Felipe Gonçalves Soares, o Lipe, atual presidente da associação, esteve à frente do festejo. Para celebrar São Pedro, tem hasteamento do mastro, missa campal, quadrilha, cortejo marítimo – que por vezes pode não acontecer por conta do vento forte e da chuva. De acordo com o historiador Simas, “há uma série de crendices populares ligadas ao santo e às chuvas. Por possuir a chave do reino dos céus, São Pedro é visto na cultura popular como aquele que tem o controle do tempo”.
Mayla Brasileiro é professora há 23 anos e idealizadora do Grupo Quadrilha Caipiras de Luxo. Ela leva uma apresentação linda para a praia para saudar São Pedro e os pescadores, “onde tem uma fogueira a gente vai e nada mais justo de estar também nessa festa de São Pedro, né? A gente gosta muito de ver os pescadores todos ali reunidos. Os meninos amam se apresentar na festa dos pescadores e é isso já tem muitos anos que a gente vem fazendo essa parceria levando a quadrilha junina na festa de São Pedro.” Além da Quadrilha de Luxo, Mayla também é idealizadora da Banda Afrobraz e do Projeto Africarte Trancoso.
“A festa já é uma tradição e é uma coisa linda. Um momento que a gente tem para se reunir. E não é uma coisa fechada só para os pescadores, é aberta para todos. Contamos com a ajuda da comunidade, temos muitos parceiros. A diretoria se organiza com um cronograma; todos trabalham voluntariamente nos preparativos da festa”, conta Robinho. Quando eu pergunto sobre o histórico da festa, ele diz que Regina é a guardiã da festa, “ela é uma pessoa muito importante para a festa, ela sabe tudo”, afirma Robinho.
Eliana Guimarães Farhat, vive há 26 anos em Trancoso e acompanha a Associação de Pescadores há mais de 10 anos, “as reuniões eram na minha casa”. Sobre a festa, ela fala com entusiasmo, “é muito bonito ver a participação dos pescadores e de suas famílias, é uma relação baseada no afeto, é bonito ver a alegria das esposas dos pescadores”, conta. “Eles enfrentam muitos problemas, é um desafio a venda do pescado, já que aqui não tem um lugar designado para isso”, pondera Eliana.
Vídeo da Festa de São Pedro 2024:
Regina Célia Ribeiro Vasquez mora em Trancoso há 19 anos. Realiza trabalhos voluntários e ajudou a fundar a associação. Em uma das reuniões de constituição decidiram organizar uma grande festa para São Pedro e levantar o mastro. Regina se emociona ao falar sobre a festa: “Para mim é muita alegria ver a união e a força dos pescadores. Quando chega a hora de levantar o mastro com a bandeira, é emocionante. A Sueli é quem confecciona a bandeira e enfeita o andor, o Valquito pinta o mastro e eu ajudo daqui e dali. Eu ajudo no que posso, mas a arte é deles. Organizar a festa é para mim uma honra. Muita coisa fica para a última hora, mas com a imagem de São Pedro ali na mesa a me olhar, o ânimo redobra. A organização é na noite anterior à festa, só termina de madrugada e cedo tem a missa. Não tinha intimidade com São Pedro, mas agora ele se tornou um santo protetor.” Trancoso mantém muitas profissões tradicionais e artesanais e os festejos acontecem com a participação desses profissionais, dos devotos e da comunidade.
A memória de Regina é cheia de cores, alegria e reafirma sua fé. Ela apresenta um pequeno roteiro movimentando as memórias: “assistir à missa lá na praia é de uma grandiosidade emocional incalculável. Este ano teve a procissão marítima, foi uma alegria enorme, estar no barco pequeno do Guinão levando o andor com São Pedro e eu segurando o estandarte com alguns pescadores a bordo. São Pedro balançava muito, mas estava firme protegendo os marinheiros a bordo daquele barquinho. O estandarte balançava ao vento, mas eu segurava firme. Esses momentos estarão para sempre em minha memória, pois este era um sonho antigo que só este ano realizamos. Me lembro muito da primeira festa, muitos pescadores chegando em procissão de terra com São Pedro no andor cantando pela praia logo cedo. Senti que meu coração se alegrava vendo a união e elegância dos pescadores. Todos com a camiseta da festa”.
Lipe fala que a participação popular é muito gratificante: “muita gente comendo e bebendo, a fila não parava. A gente tem esse medo, a comida não vai dar. Era impressionante, acabava e chegava mais e mais. Quando o negócio é de coração é muito bom. Espero que ano que vem a gente, né, a gente possa fazer melhor.”
Eu perguntei a Regina sobre os desafios do ofício e, já que São Pedro cuida dos pescadores e tem a chave do céu, se ela pudesse fazer um pedido a São Pedro, qual pedido ela faria. “Já ouvi várias histórias dos pescadores de Trancoso, muitas de arrepiar e outras de tirar o fôlego. Acredito em todas. Enfrentar o medo, ficar lá fora entre ondas fortes, correntezas, ventania, chuva, sem dormir e cuidando do barco exige muita força e coragem. Eles precisam trazer peixe para vender e não importa os problemas que irão enfrentar. O pedido que eu faço a São Pedro é que cuide de cada pescador em alto mar. Que os leve e os traga em segurança para suas famílias”, Regina finaliza com fé e esperança.