A primeira vez que vi Jaçanã foi quando realizamos a “Mostra Eu Mais Velha de Audiovisual”. No ápice da pandemia, a mostra aconteceu no formato totalmente online e uma das mais acalentadoras surpresas foi assistir o filme ‘’Mulheres da Terra’’ de Mayara Boaretto e Isadora Carneiro, no qual Jaçanã é uma das personagens principais – fazendo parto, beijando as plantas, conversando com elas, contando causos.
Ao vê-la me senti tal qual aqueles seres vegetais, recebendo muito amor, carinho e cuidado. Nessa época eu ainda morava no estado do Paraná e não imaginava que iria migrar para o extremo sul da Bahia. No ano de 2022, já moradora dessas terras, fui para o VI Encontro de Pajés que acontece em Pau Brasil, no Território Indígena Caramuru Catarina Paraguaçu e para a minha alegria recebi pessoalmente as bênçãos de Pajé Jaçanã. Através de Cecília Suñé Novossat (Ceci Goēy) do projeto ‘’Territórios-corpo em expressão’’ , aos poucos fomos nos tornando amigas, pois moramos em regiões muito próximas, eu em Arraial D’ajuda, ela na Terra Indígena de Aldeia Velha que se encontra neste mesmo distrito de Porto Seguro.
A história de vida de Jaçanã está entrelaçada ao início do que chamamos Brasil. Ela veio ao mundo entre os rios e mares da Terra Indígena Barra Velha, a aldeia mãe do Povo Pataxó, onde atualmente se encontra, sobreposto ao território indígena, o Parque Nacional do Monte Pascoal, que foi o primeiro ponto de terra à vista das expedições portuguesas.
‘’Eu nasci em Barra Velha, a minha mãe se chamava Josefa, a minha avó chamava Emilia. Meu pai era pataxó, que era de Trancoso. Minha mãe é de Barra Velha. Todos Pataxó.’’
Toda a região da chamada ‘’Costa do Descobrimento’’ já era habitada pelos povos indígenas e assim segue sendo, apesar das tantas violências pelas quais passam até hoje. Em 1951, Jaçanã presenciou um violento ataque ao seu povo que aconteceu em Barra Velha, o Fogo de 51. Seus parentes foram torturados, mortos e tiveram as suas casas queimadas. Esse massacre ocasionou uma migração de diversas famílias para outras regiões, e também um silenciamento por medo de se dizerem Pataxó.
A mãe de Jaçanã faleceu pouco tempo depois, e seu pai a levou para a região de Vale Verde, que também faz parte de Porto Seguro, para trabalharem no plantio em uma fazenda. Ali ela casou, teve 9 filhos, destes, cinco faleceram, alguns de forma trágica. São histórias que até hoje roubam o que lhe é tão próprio, sua alegria. Mas, como toda curandeira que já conheci, são vivências e acontecimentos que guardam em si ensinamentos de cura, de transcendência, seja pela comunicação através dos sonhos premonitórios, seja através de outras formas de acesso ao mundo espiritual, ajudando a compreender os mistérios da vida e da morte.
Jaçanã tem força espiritual e não por acaso é a primeira pajé mulher do povo Pataxó e uma das fundadoras da Terra Indígena Aldeia Velha. Na década de 1990, Ipê, morador da Aldeia Coroa Vermelha, passou a reunir alguns indígenas Pataxó que estavam desaldeados, muitos em função das migrações do Fogo de 51. Por isso, ele iniciou um processo de retomada de um território ancestral de seu povo junto a algumas famílias Pataxó, entre elas, a família de Jaçanã. Após algumas tentativas e conflitos com a polícia, eles fundaram o que hoje é a reserva de Aldeia Velha, uma aldeia urbana que possui um área de mata preservada de cerca de 2.000 hectares, onde atualmente, Ipê é o cacique e Jaçanã a pajé e parteira.
Desde criança Jaçanã ansiava por realizar partos. Sempre que esteve presente nos momentos de nascimento de algum ser ela se oferecia a aparar o neném na sua chegada ao mundo. Ela conta que já nasceu pajé e parteira, que é um dom que Tupã deu. Aos 20 anos realizou o seu primeiro parto. Hoje com 85 anos, ou mais, ou menos (a data de seu nascimento foi criada por ela para conseguir casar), já realizou mais de mil partos.
Jaçanã é um pássaro que pesca
Nas idas e vindas dos encontros nas aldeias, quilombos, assentamentos, fomentando os trabalhos do projeto “Eu Mais Velha” fui acompanhando Jaçanã junto à Cecília nos intercâmbios de saberes e oficinas, e assim, fui aprofundando os vínculos e confiança com ela e sua família. Conjuntamente com suas filhas, Parú (Maria Aparecida) e Apetinã (Maria Raimunda) e Cecília e Airton Gregório, iniciamos um projeto para a realização de um sonho de Jaçanã – a produção do que ela mesma nomeou ‘’um livro-fruto’’ – livro e audiolivro autobiográfico com uma parte da imensidão que é a vida de Jaçanã, com cantigas de roda, causos, saberes sobre curas, sonhos – cosmovisões de uma pajé parteira, de uma majé, que não domina a alfabetização do branco, mas que entende bem a linguagem dos pássaros, das gestantes, das plantas, das crianças, das nuvens, do vento, da lua, da terra, das marés, da pesca, da coragem, do amor.
‘’eu tô fazendo esse livro que é pra poder deixar de lembrança pra meus filhos e pra quem lê meu livro saber que eu estive aqui nesse mundo e vou embora mas deixo sempre a saudade, e o livro pra poder todo mundo saber o que eu fiz nesse mundo e tudo eu deixo de lembrança as minhas palavras e meus trabalhos que eu já fiz, é o que eu posso fazer, é falar essas coisas’’
Jaçanã está registrada na vida e memórias das mães e crianças as quais ela partejou, nas vidas das pessoas que ela rezou, curou, ajudou, cuidou, está nos livros ‘’Mulheres de Terra e Água’’, ‘’Jaçanã – causos e a vida de uma pajé pataxó’’ , no filme ‘’Jaçanã – Pahab Joôpek’’, e diversos artigos, entrevistas e matérias. Já viajou por diversos estados para partilhar seus saberes, em universidades, congressos e encontros. No ano de 2025, sua vida e memórias estarão registradas no seu livro, contadas a partir da sua própria narrativa.
Como diz uma grande amiga de Jaçanã, professora Mayá Maria Muniz Tupinambá no seu livro A Escola da Reconquista “a minha trajetória é sobre reconquistar esse caminhar, esse falar e esse ouvir, em formas diferentes, lembrando que nosso povo ainda existe, que nosso povo tem ainda uma forma de viver, de caminhar. Então, é uma reconquista. Nós estamos a lembrar à humanidade que a nossa nação nunca morreu. Silenciou devido às guerrilhas contra nossos povos indígenas. Retomar nossa educação é preparar o povo de nossa comunidade para que nossa cultura fique cada vez mais forte e, com isso, nosso povo cada vez mais feliz’’
“Ó amigo Sagui, eu estou aqui, eu vou contar uma história para tu. Eu estou aqui debaixo da natureza. A natureza é tão bonita, tão formosa, que vocês não saem do galho da natureza.
Por que vocês fazem isso? Para me roubarem minhas plantas? Vocês são demais. Vocês chegaram no meu pé de jabuticaba e acabaram tudo. Como é que vocês são assim? Eu não quero que vocês acabem também com as minhas plantas. Eu preciso também, viu? Viu, Sagui? Vamos repartir. Você come o seu e deixa o meu. A minha história é essa para vocês. Deixa de ser gula. Eu amo vocês. Não quero ver vocês com fome. Quando eu planto, é para poder ver vocês também com a barriguinha cheia. Porque a fome dói. E eu quero que vocês também enchem suas barriguinhas. Mas deixa para mim. Também, viu? Viu sagui”. - Jaçanã
“Eu Mais Velha” é um projeto que atua em defesa da natureza e dos direitos dos povos originários, em parceria com mulheres guardiãs de territórios e saberes ancestrais. Por meio de ações voltadas à continuidade e manutenção das práticas tradicionais, especialmente as relacionadas a curas e cuidados, o projeto subsidia a elaboração, qualificação e realização de iniciativas que valorizam a ancestralidade, promovem a equidade de gênero e fortalecem as comunidades locais. Além disso, busca contribuir para o monitoramento de políticas públicas e transformações sociais.
Para apoiar as mulheres e ações do projeto entre em contato através do @eumaisvelha ou do e-mail:projetoeumaisvelha@gmail.com