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Parteiras de Trancoso

Parteiras de Trancoso

part. 1

Histórias de Trancoso – As Parteiras

No dia 9 de maio de 2024, o Conselho Consultivo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) aprovou, por unanimidade, o registro do “Ofício, Saberes e Práticas das Parteiras Tradicionais do Brasil” como Patrimônio Cultural do País. 

Em celebração à memória coletiva e no que se refere ao que veio antes, que atribui identidade e pertencimento à comunidade de Trancoso, jogamos luz na história de 3 mulheres que, através dessa prática milenar, trouxeram ao mundo centenas de vidas que circulam nos dias atuais pelas ruas do vilarejo. Não só dessas mulheres são compostas essas histórias, já que o envolvimento das gerações atuais foi essencialmente importante para que elas chegassem até aqui.

Vivências e tradições familiares que compõem a Trancoso moderna foram cultivadas e são ancoradas por essas sementes que vieram pelas mãos das parteiras de Trancoso. Ao remexer nessas memórias é impossível olhar para o Quadrado de Trancoso e não voltar ao passado. Instantaneamente nos colocamos a imaginar como eram as relações, o modo de viver e o cenário da época.

Em um determinado período desse passado, entre as décadas de 60 e 90, Maria de Irênio, Higina Cristo e Maria Da Glória eram vizinhas ali mesmo no Quadrado, e a cada nova contração, nesse movimento indicando que uma nova vida estava para chegar, lá estavam elas com seus conhecimentos ancestrais para receber mais uma luz no território. A que estava mais próxima e disponível,  segundo Damião Vieira, que nasceu pelas mãos de uma delas, era a da vez.

Ninguém faz ideia de quem vem lá
Mas todo mundo sabe que vem gente,
Que respira, pulsa e sente
Gente como a gente

- Sabrina Ferigato

Detentoras de saberes populares que se associam à natureza, para além dessas 3 parteiras, muitas outras mulheres da época acabaram realizando partos ou participaram como auxiliares, aumentando ainda mais a rede de mulheres fortes que se faziam responsáveis por trazer nova vida à vila. É o caso de Dona Bernarda, Frozina e Didi, que se depararam com a necessidade de realizar a prática em alguns momentos e que, através  do conhecimento milenar compartilhado e de olhares atentos, adquiriam  os conhecimentos necessários para perpetuar o ofício. Silvana Vieira, filha de Dona Bernarda, me conta que geralmente elas iam em duas ajudar a mulher que estava parindo. E como a mãe sempre cumpria o resguardo de 30 dias, elas também ajudavam nos afazeres domésticos, buscando água no rio, lavando roupa e cozinhando. Maria de Irênio, por exemplo, realizou muitos partos na roça. Os maridos buscavam-na no Quadrado dias antes do nascimento da criança, e ela se colocava à disposição nos cuidados com a mãe e a família. 

Nascença, ação de vir ao mundo

Ainda hoje, a sabedoria cultural e a tradição se manifestam através de mulheres que fazem parte das famílias das parteiras. Trancoso cresceu, a população cresceu, mas muitas mulheres ainda vivenciam um cotidiano que está para além dos olhos turísticos. Muitos partos ainda são realizados em Trancoso e região através dos conhecimentos preservados pelas famílias. Por vezes, a tradição salva vidas: Silvana lembra emocionada que estava no local e no momento certo quando realizou o parto da neta dentro da ambulância indo para Porto Seguro, já que não daria tempo de chegar até o hospital. Descobri ao longo das conversas com as filhas dessas parteiras que Maria de João Dormindo ainda é parteira em Trancoso. Ela é da mesma geração de Maria de Irenio, Higina e Maria da Glória que infelizmente já faleceram. Eram todas amigas. 

Nascer, passar a existência

Uma tradição que até hoje é preservada na região em celebração ao nascimento e aos cuidados da mãe é a Temperada de Parida. A cachaça é usada como base para uma mistura de ervas. Silvana me conta que nessa Temperada são colocadas arruda, manjericão, hortelã miúda, folhinha de algodão, palma, entre outras ervas. Tudo isso é misturado com mel. A Temperada serve para restabelecer a saúde física e mental da mãe que acabou de parir, livrando-a de algum mal que possa ter ficado em seu corpo e limpando o seu útero. 

Se em tempos remotos, as parteiras desempenhavam um papel primordial para que vidas viessem ao mundo em vilarejos como Trancoso, atualmente, mesmo com os avanços da medicina, mulheres do mundo todo procuram parteiras tradicionais, no desejo dessa reconexão com sua história e origens. Em busca por um parto em que haja cuidado físico, mental e espiritual com a mãe que gesta, com a criança por nascer e com toda família.

A importância de se olhar com empatia e respeito para a história de cada vida que circula pelo território de Trancoso e região, faz parte da genuína viagem de conhecer esse destino e entender suas peculiaridades, sabedorias e principalmente a sua essência. 

Princípio, Começo, Início, Origem

Maria Izaltaçāo dos Santos

Quem trouxe a história de Maria de Irênio foi uma de suas sementes, Damião Vieira*. Artista de grande reconhecimento em Trancoso, foi ele quem me contou sobre a mulher cuja história como parteira é pouco conhecida. Juntos chegamos a conclusão da importância de resgatar a trajetória dessa mulher que tanto se doou para a comunidade. Foi através das mãos de Maria Irênio que Damião veio ao mundo, ele e seu irmão gêmeo, Cosme*

Apesar de pouco registro sobre a sua história, ela é responsável por centenas de partos e, segundo dizem, foi ela quem mais ajudou mulheres da região a darem à luz. Maria de Irenio era uma mulher simpática, alegre, festeira e que estava sempre pronta para trazer uma nova vida para o território. Teve 6 filhos, todos criados por ela, nunca se casou.

Em um dia ensolarado, durante um bate papo com Robson, neto da parteira, ele me apresentou Dona Niura dos Santos, uma de suas filhas. Dona Niura conta não se lembrar de muita coisa, e quando pergunto se ela sabe quantos partos sua mãe fez em Trancoso ela diz não saber, mas que foram muitos, principalmente na roça. Contudo, ela se lembra claramente de uma cena constante em sua infância: maridos vindos da roça buscar sua mãe para fazer o parto de suas mulheres, dias antes, para que ela acompanhasse o fim da gestação. Me conta que tanto a mãe quanto ela trabalharam muito, e que para realizar os trabalhos naquela época, existia uma primeira função: a de buscar água e trazê-la em baldes na cabeça.

A senhora risonha, que transparece grande sabedoria e tem humor sagaz, olha para o Quadrado, após sair da missa de Domingo, com saudosismo e me conta sobre sua infância naquele mágico lugar. Dentre as memórias mais especiais, recorda-se das espécies de árvores frutíferas que faziam parte do cenário naqueles dias de brincadeira com seus irmãos e primos. Dona Niura também é enfática: “aqui todo mundo é parente!”. Afinal, em Trancoso a parteira não era só a que trazia a criança ao mundo, ela virava Avó de Parto. Assim como também era muito comum as Mães de Leite.

Dona Niura teve 9 filhos, a grande maioria pariu sozinha, sem a ajuda da mãe. Diz ter algo que ela nunca conseguiu desvendar, o “porquê da mãe ter feito somente partos dela e não ter feito das suas duas irmãs?”. Ela diz não saber o motivo, afinal, sua mãe que realizava tantos partos, nem chegara a entrar no quarto durante o trabalho de parto das outras filhas. E que isso é algo que a deixa intrigada até hoje

É ela quem me conta sobre a parteira Maria de João Dormindo, que é avó de parto de seus sobrinhos Robson dos Santos Conceição e Remiele dos Santos Conceição. Filha de seu Irenio, conhecido como o Mago da Alméscar, Maria de Irenio era de origem muito humilde e sobraram poucas recordações físicas dessa mulher que trabalhava muito e se dedicava no acolhimento de mães que estavam por trazer crianças ao mundo.

Remiele é quem guarda a memória material de Maria de Irenio, dentre elas, a certidão de nascimento da avó e uma foto em uma moldura. Niura diz nunca ter perguntado à mãe como ela começou como parteira, mas que acredita que foi algo natural, que em algum momento se deparou com a necessidade e assim passou a fazer mais e mais partos.

*Damião Viera é o artista que faz as bandeiras do mastro das festas tradicionais de São Sebastião e São Brás. Seu irmão gêmeo Cosme, infelizmente veio a falecer um mês depois do parto, em uma época onde os números de mortalidade infantil eram bastante elevados.

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