Depois, tudo se junta. Sem os quatro elementos não há vida! Não se concebe, não se nasce, não se pari, não se vive. Somos quatro em um, um em quatro. Ser parteira é saber disso no coração e nas mãos. Cuidar da vida que chega nesse mundo é cuidar dessa fronteira tão tênue. Não dominamos a natureza, nem a controlamos. Compreender que dela somos parte é entender que a vida é forte demais em sua fragilidade e infinitamente frágil em sua força. Ela é independente. Autônoma. Mistério.
Helena Tenderini – parteira, rezadeira, artista, educadora, antropóloga e cuidadora.
Higina Cristo
No dia 21 de agosto de 1964, a vida da professora Higina mudava completamente, pois chegava com sua família em Trancoso para estabelecer morada. Nesse mesmo dia, Janete Vieira tentava vir ao mundo, com sua mãe já sem forças, esforçando-se para parir. E foi aí que a história dessas duas mulheres, Higina e Janete, se cruzaram.
Emocionada, Janete começa dizendo “ah, a história do meu parto é a coisa mais linda! No dia que eles chegaram aqui em Trancoso, dona Higina, eu nasci, a gente tem uma conexão muito linda.”
Enquanto a professora Higina chegava em Trancoso e acomodava-se em uma das casinhas no Quadrado com seus 6 filhos (teve mais 2 quando já morava em Trancoso), a mãe de Janete estava em trabalho de parto. Seu avô João Alves foi lá conversar com ela, afinal, “quem sabe ela não sabia fazer parto?”. Janete conta que seu avô já chegou chamando a nova moradora de Dona Gina e disse “minha filha está tentando dar à luz, a senhora não pode ir lá dar uma força?”.
Ela tinha acabado de chegar de viagem, não tinha nem tomado banho, mas o marido de Dona Higina deu apoio, dizendo para ela ir lá sim. Além de professora, Higina também tinha uma maletinha com tudo. Então ela lavou suas mãos, pegou a maletinha e foi ao encontro de Bernarda, mãe de Janete, que já estava se entregando.
Janete conta que ela tinha em sua maleta uma injeção e a usou durante o parto, e que assim ela nasceu pelas mãos dessa mulher que trilhou uma história de muito empenho, força e devoção no vilarejo. Anos depois, Higina ainda fez o parto de dois filhos de Janete, “Ela fez eu vir ao mundo e fez o parto da minha filha mais velha que está com 41 e do João que está com 38 anos”.
“No dia que ela chegou, eu nasci, tanto que é engraçado, que quando é meu aniversário, elas (filhas de Higina) falam assim: vamos fazer um bolo aqui. Daí faz um bolo lá e outro aqui (se referindo a sua casa)”. As famílias ainda são vizinhas no Quadrado de Trancoso, e moram em casas quase de frente uma para a outra. “Esse ano vai fazer 60 anos” diz Janete com sorriso no rosto.
“E ainda ela foi a minha professora. Eu gosto de ler, ela me dizia assim:
leia Janete, que é bom! Com a leitura a gente conhece o mundo. A gente tem conexão, é muito linda a nossa amizade (referindo-se a família de Higina)”. A chegada de Higina na região, segundo Janete, foi um acontecimento.
“Era uma novidade, ela foi a primeira professora. Era assim, todo mundo dizendo “Vai chegar uma professora em Trancoso”. Porém Anilza, filha de Higina, discorda: “Minha mãe foi a primeira professora que veio e ficou, mas antes disso teve outros professores que vieram e não ficaram”. Dáda, outra filha da parteira, relembra que a mãe também era costureira, ofício esse aprendido e desenvolvido por ela até hoje.
Maria da Glória
Nativa de Trancoso, Maria da Glória foi casada com João Grande, também da terra, e, juntos, tiveram 19 filhos. Sua própria experiência a tornou a parteira mais reconhecida da cidade e, por suas mãos, nasceram pelo menos 305 crianças.
“A qualquer hora, até de madrugada, se batessem à nossa porta pedindo ajuda, ela ia imediatamente e nunca cobrou nada”, conta sua filha Nelly Teixeira. Mulher de grande sabedoria popular, conhecia as propriedades de cura das plantas e ervas da mata. “Nós fomos usar medicamentos de farmácia só depois de crescidos”, complementa Nelly.
As capacidades dessa incrível mulher, aprimoradas por técnicas ancestrais e suportadas por muita fé, conseguiram que cada parto executado por ela desse certo. E depois do parto, aquela temperada de ervas e licores era oferecida para dar uma boa vinda ao recém-nascido.
A Casa da Glória, que hoje é pousada, é mais do que um lugar para ficar ou comer. Foi o lar de uma mulher forte que trouxe à vida muitas crianças e que, com muito trabalho e amor, sempre providenciou o necessário para sua família, amigos e quem mais precisasse. É parte da memória de Trancoso. “A vida de mamãe nos dá muito orgulho. Ela foi uma mulher muito querida por todos, alegre, generosa e sábia, que nos ensinou o valor da nossa terra e da nossa história. O Quadrado foi o nosso quintal na infância e espero que seja para as minhas filhas também”, completa Nelly.
Elevar o olhar e apreciar cada rosto com traços de histórias é percorrer memórias que compõem a comunidade de Trancoso, é enxergar quem nasceu, renasceu e EXISTE neste lugar que une espiritualidade, tradições, manifestações e cenários naturais, que faz a vida humana SER MUITAS NATUREZAS, ensinamento este deixado por Seu Manoel da Vitória, mas essa, é uma outra história!
Através das parteiras de Trancoso resgatamos histórias para que aqui também nasça a Revista Trancoso, seja bem-vindo!