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Pesca artesanal em Porto Seguro

Pesca artesanal em Porto Seguro

Uma tradição com futuro incerto

Quem andar pelo centro de Porto Seguro atento aos nomes das ruas poderá notar as menções à origem pesqueira da cidade: rua dos Pescadores, praça, travessa e rua denominada São Pedro – a quem é também devotada uma festa anual no dia 29 de junho, quando pescadores e familiares vão ao mar celebrar o padroeiro da pesca.

A Porto Seguro que, na primeira metade do século XX, tinha na pesca artesanal a principal forma de subsistência, enquanto observava a opulência do cacau de Belmonte e Ilhéus, passou por muitas mudanças. A partir da década de 1970, veio a ascensão do turismo como principal atividade econômica. Mas a pesca artesanal persiste como uma atividade econômica consistente e uma forma de preservação de conhecimentos tradicionais de gerações de pescadores nativos do município.

Uma vila de pescadores

“Porto Seguro nasceu como uma vila de pescadores”, nos conta Eliomar Peixoto Lage, 55 anos, conhecido entre todos como Branco de Lico (foto de capa). Lico é o apelido de Aliandre Lage, seu pai, pescador que criou irmãos e filhos a partir do ofício da pesca e da abundância que vem do mar. Branco cresceu na beira do Buranhém, correndo para a beira do rio para esperar seu pai chegar da pesca. Adelaide Peixoto Lage, dona Del, 80 anos, sua mãe e viúva de Aliandre, relembra: “Ele ia para a escola, o pai ia pescar de canoa. Quando ele chegava, ele já sabia a hora que o pai chegava. Ele ia em casa, almoçava e sumia para a praia. Quando eu procurava ele para ir para a banca, cadê ele? Já estava na praia”. Branco tirou a primeira habilitação da Marinha para dirigir barco com 14 anos sob permissão de um juiz de paz, e desde então atua como pescador profissional em tempo integral.

Como ele, aproximadamente 500 famílias estão cadastradas como pescadores artesanais na Colônia Z22, a Colônia de Pescadores de Porto Seguro. A colônia abrange toda região costeira do município, incluindo Trancoso, Caraíva, Xandó, Corumbau, Pindorama, Ribeirinho, Vale Verde, entre outras localidades. À frente da colônia está Pedro Menezes, atual presidente. Aos 35 anos e nativo de Porto Seguro, Pedro também vive da pesca desde jovem: “Eu lembro que meu pai tinha barco, meu avô tinha barco, meu tio tinha barco”, nos conta. Aos 17 anos, Pedro comprou o seu próprio barco e, quando perguntado sobre como aprendeu a pescar, é assertivo. “Na verdade a pesca você aprende com os mais velhos, com o mais experiente do que você. A gente não tem uma teoria que possa ensinar a pesca. Você aprende na vivência, no dia-a-dia. Foi com essa convivência, essa ligação com o mar, que a gente foi aprendendo a pescar”.

A sede da Z22 fica rua São Pedro, ao lado da praça homônima, de onde partem e chegam embarcações que vão ao mar em incursões de duração média de sete a dez dias, para voltar à praia com centenas ou toneladas de quilos de pescado. No dia em que a reportagem chegou à colônia, pescadores desembarcaram seis toneladas recém-trazidas do mar por quatro embarcações. Fernando Lage, 31 anos, filho de Branco, pescador como o pai e o avô desde os 14 anos de idade, nos conta da sua última saída para o mar: “Hoje em dia passo sete dias, no máximo oito. Quando a pescaria está boa, muito boa mesmo, pegamos 200 kg de peixe por noite. Dá uns mil quilos. Por exemplo, a última agora eu passei sete dias e trouxe 600 quilos de peixe”.

O espinhel é uma das técnicas mais utilizadas: anzóis ligados por uma corda são espalhados em alto mar.
O espinhel é uma das técnicas mais utilizadas: anzóis ligados por uma corda são espalhados em alto mar.

A produção mensal dos pescadores da colônia chega a uma média de 20 a 30 toneladas, abrangendo, além do peixe, camarão, caranguejo, lambreta, entre outros tipos de pescado. Pedro, que é presidente da colônia desde 2019, estando no segundo mandato (2023-2027), relata as melhorias que a colônia tem conseguido para apoiar a categoria: “Estamos fazendo uma fábrica de gelo de 25 toneladas por dia e estamos com o projeto de uma graxaria, que é pra pegar o resíduo do pescado e transformar em farinha e óleo de peixe. E no projeto tem também uma descascadora de camarão”. Pedro relata que a graxaria irá dar destinação ecológica e ajudar a gerar renda a partir de aproximadamente 30 toneladas de resíduos que são hoje dispensados no Rio Buranhém.

No tempo das Salgadeiras

Nem sempre foi com gelo que os barcos partiam para o mar. Para mais dias, as incursões de pesca eram feitas nas Salgadeiras. O nome da embarcação vinha do sal, carregado no porão para conservar o peixe. “Este já ia várias pessoas. De oito a dez pessoas. E passava 15, 20 dias no mar. Pescando, salgando (…) Badejo grande, garoupa, muita garoupa. Muito peroá”, lembra Dona Del.

Era o tempo em que a BR-101 não chegava ao extremo sul da Bahia. “A mercadoria vinha de Salvador por barco”, conta Branco.“Aqui só tinha o rio. Só o [navio] Nazaré que entrava”, complementa Dona Del. Nazaré era o navio mercante que trazia mantimentos – de comida a querosene, e levava para Salvador a produção local como piaçava e cacau. O dia-a-dia também era outro. Dona Del lembra a rotina com seu marido, seu Lico, como pescador: “Eu já deixava as coisas dele tudo arrumadinha. Café, roupa, merenda. Aí quando era três horas da manhã ele saía para o mar. E voltava, chegava em casa, eram as dez horas da noite”. Para comer, a família às vezes precisava esperar chegar o peixe do mar, complementados com frutos do quintal: “Normalmente no quintal tinha um pé de bananeira, tinha um pé de batata. Pé de fruta-pão tinha muito”, conta Branco. “A gente comia muita farinha. Os meninos jantavam era pirão de polvo”, rememora sua mãe.

Além das salgadeiras, tinha a pesca de canoa com vela que ia até o Parque Marinho Recife de Fora. “Era o ponto seguro dos pescadores, o Recife de Fora. Porque lá você pescava o peixe e o polvo, se a pescaria não estivesse boa. A maré baixava, você podia subir no recife, para catar polvo”, conta Branco.

Em alto mar, o barco pescava sem ancorar, em uma modalidade de pesca conhecida como “pesca de caída”. “Naquele tempo não tinha recurso. Até a corda era feita de piaçava. Não tinha nada para ancorar. Era muito fundo. Media por braça”, explica. Se hoje o aparelho diz a profundidade, naquela época era por conhecimento passado entre gerações. Mesmo assim os pescadores já alcançavam o fim da plataforma continental, onde o mar possui milhares de metros de profundidade. “Era preciso saber voltar da plataforma continental, para continuar pescando”, diz Branco. Sem rádio, era com o fogo que se fazia a sinalização caso um navio grande se aproximasse no meio da noite sem ver as pequenas embarcações pesqueiras.

O espinhel é uma das técnicas mais utilizadas: anzóis ligados por uma corda são espalhados em alto mar.

Com a navegação a vela, também nem sempre era possível voltar no dia previsto. “Quando batia o vento sul, a gente ficava desesperado. Porque a gente sabia que eles não conseguiriam entrar aqui. Davam em Ilhéus, Canavieiras, até Salvador”, recorda Dona Del. Nestas ocasiões, os pescadores enviavam um mensageiro para dizer em qual porto tinham ancorado, pescavam para comprar alimento para a volta e esperavam dar o vento certo. “Porque o vento sul empurrava lá. O nordeste empurrava pra cá”, explica Dona. De mantimentos para o alto mar levavam “Farinha, dendê, sal e açúcar. E quando chegava no mar, cada um produzia o seu”, detalha Branco.

Hoje as principais técnicas utilizadas na pescaria artesanal da região são a rede, o anzol e o espinhel – uma corda que carrega 300, 400 anzóis esticados ao longo do mar por entre cinco e seis quilômetros de distância. “A gente aprende com os mais velhos, né? Tem a técnica da lua, do escuro, do claro”, explica Pedro, destacando que as modalidades antigas de pesca continuam, mas agora com a modernização da aparelhagem: “Às vezes bota um guincho para puxar, pra não fazer força. Antigamente a gente não tinha, por exemplo, sonar e localizar cardume. E o GPS da localização do pescado”, explica.

Antigamente, era pelo conhecimento dos astros e das marés que os pescadores se guiavam em alto mar

A estalaria naval de Mestre Quincas

Firmada no centro da rua São Pedro está também a estalaria naval de Mestre Quincas. O local e o legado do renomado marceneiro naval Joaquim Valansuela Ramos, conhecido como Mestre Quincas, é hoje levado pelos seus três filhos – Cleide, Cremilson e Cenildo dos Santos Ramos. Cenildo, ou Cecé, 56 anos de vida e cinquenta barcos construídos, lembra dos conhecimentos distintos de seu pai: “Meu pai fazia barco de risco, no tablado. Sem tirar a forma, ia fazendo as cavernas e depois armava o barco inteiro”. Foram cerca de sessenta embarcações construídas, inclusive a primeira escuna de Porto Seguro, encomendada por Vivaldo Rego, o então dono do cartório da cidade.

Cecé, filho mais novo de mestre Quincas, é um dos responsáveis por manter o legado do renomado marceneiro naval do município.

 Deste tempo, de quando até os pregos eram produzidos no estaleiro, ainda está a máquina serra fita, usada para cortar as partes redondas do esqueleto do barco “Que nunca trocou o rolamento”, nos fala Cremilson, filho de Quincas e também marceneiro naval.

As contribuições de Mestre Quincas vão para além da estalaria naval. A arte da sua marcenaria contribuiu para o patrimônio arquitetônico da cidade de Porto Seguro. Foi de sua autoria, por exemplo, o teto da Igreja Nossa Senhora do Brasil, no centro da cidade. “Quando era um telhado muito difícil, tipo a maçonaria que era um vão muito grande, aí chamaram ele também. Falavam, chama Mestre Quincas”, conta Cecé. A preocupação com o futuro deste legado paira no ar: “Aqui trabalhava uns 10 homens. Hoje está eu e meu irmão”.  “Que pena que a profissão está acabando”, lamenta.

“Barco Oxalá”, um dos primeiros construídos por Mestre Quincas em seu estaleiro.

Para além da economia, um legado cultural

A influência cultural da pesca no cotidiano e cultura de Porto Seguro é observada por Alcyone Gilberto, historiador e professor natural de Porto Seguro. “A pesca vai ser uma mola mestra do desenvolvimento não apenas econômico da cidade. A pesca vai contribuir com a dinâmica da formação cultural, humana das pessoas da cidade”, analisa.

O historiador, que criou o projeto “Porto seguro, História e Memória” para registrar narrativas e memórias de antigos moradores da cidade, lembra de como a pesca fazia parte do cotidiano de todos os moradores da cidade na década de 70/80: “Quando era noite de lua cheia, iamos um monte de famílias com um monte de samburá para a coroa que circunda o rio. Ficava aquela lua maravilhosa, iluminando aquele banco de areia e aquele monte de família pegando bugigão e taioba, para fazer sopa”. Também as festividades locais faziam referência à tradição da pesca: a tradicional festa da Bicharada, um bloco de rua com canções e danças, trazia em encenações musicais e nos figurinos a homenagem ao ofício da pesca.

A paisagem, arquitetura e história de Porto Seguro são marcados pelo ofício da pesca

Futuro da tradição

Toda esta riqueza possui um futuro incerto. Pedro é emblemático: “A gente tem poucos jovens entrando no rumo da pesca. Isso num futuro bem próximo, vai acabar. Porque nunca vi aprender pescaria na teoria. Só na prática. Então se não foi na prática com os mais velhos, a tendência é acabar”. Pedro estima que, no município, há atualmente no máximo 50 pessoas com idade inferior a 40 anos atuando na pesca. “A maioria é 50, 60 anos, até de 73 anos tem um pescador aqui que trabalha. Então a gente tem uma frota de pescadores velha e não tem gente entrando no mercado”.

Fernando Lage não vê seu futuro sem a pesca, mas tem buscado expandir os negócios. Há quatro anos abriu junto com seu irmão uma empresa de pescado que vende peixe localmente e para exportação. É na inovação que ele vê um caminho para a pesca: “A gente tem que se aperfeiçoar o tempo todo. Porque se não se aperfeiçoar a gente vai ficar para trás”.

Fernando Lage, pescador como o pai, Branco, vê na inovação o futuro da pesca

Apesar do pouco interesse das novas gerações, Pedro também afirma que a pesca oferece oportunidade única de autonomia e sustentabilidade, principalmente para jovens que podem aliar o conhecimento dos antigos com a tecnologia moderna. “É possível viver bem com a pesca e é necessário inovação. Quem nasceu nesta nova geração, que conhece de aparelhagem e tem uma expertise boa, se entrar na pesca consegue ter grandes resultados”, observa.

O futuro da pesca artesanal também é ameaçado pela pesca industrial: navios que vêm de longe com espinhel de quilômetros e redes de arrasto que pescam sem seletividade e em grande quantidade. “Essa forma não é muito sustentável. Tem peixe que não serve nem pra ele. Acaba sendo descartado, mas já tá morto. Ele não quer gastar gelo com um peixe que não tem valor comercial, aí ele joga o peixe no mar”, explica Branco. Estes grandes navios acabam reduzindo a quantidade de pescado disponível para os pescadores artesanais: “Ele pegou o peixe todo. E não deixou nada pra ninguém”, alerta Branco.

Mas a paixão pela pesca e pela vida neste ofício é algo em comum que atravessa todos os pescadores. “Podem falar de pescador não ser valorizado, reconhecido, contador de história, mas tenho o maior orgulho de pescador. E falo de boca cheia!”, diz, com alegria, Branco. Fernando pensa como o pai: “Cá no mar você é livre. Você trabalha quando você quer, é autônomo e ganha mais. E vive bem melhor!”.

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